Quase

Ele chegou quando ela já estava na poltrona 15. Acomodou os pertences no bolso, enquanto ela se ajeitava para dormir. Blusa como cobertor, travesseiro inflável. Ele riu baixinho com o barulho de assopro do bico da tal almofada. Ela não viu. Até a saída do ônibus, não se falaram. Nem por sinais. No máximo, o cotovelo dele tocava o braço dela, numa disputa silenciosa pelo "braço" estreito que os separava.
Ele pegou um livro de capa azul. Ela ficou curiosa para saber o assunto do pequeno encadernado, mas não perguntou. Preferiu pegar suas folhas sobre Nazismo. Ele ficou curioso para saber o porquê do interesse no assunto, mas também não perguntou. Continuou com os olhos no Veríssimo. Um tempo depois, fez-se o contato.

- Posso? – pediu ela, apontando o corredor ao lado.
- Hã? – respondeu, desentendido.
- Posso passar? Preciso ir ao banheiro...
- Ah, claro.
Prestativo, colocou as pernas para o lado. Ela saiu, mas quase caiu sobre ele. "O bonitinho podia ter saído, né?", pensou ela, abrindo o sorriso. "Nossa, é linda", concluiu ele em silêncio, olhando direto para a boca dela.
Na volta, ela apontou a moeda de cinco centavos jogada na poltrona, certamente caída do bolso dele. Ele recolheu, agradeceu com a cabeça e passou a girar o pertence entre os dedos, enquanto ela voltava às folhas. Nenhuma palavra. Ela riu baixinho quando ele perdeu o controle do níquel e o deixou cair. Ele não viu.
Assim foi por seis horas, sem um diálogo sequer. Ele tentava "colher" o conteúdo das folhas verdes e rosas dela, enquanto pensava sobre quem poderia a companheira de poltrona. Do outro lado, ela fingia concentração na chatice do Hitler e tentava "pescar" o tema do livro azul dele.
E foi dessa forma que eles - Rodrigo e Roberta, que seriam casados, teriam dois filhos e, depois de algum esforço, uma casa em Ubatuba - deixaram de se conhecer.

autoria: Julio Simões - data: 13/10/06

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