O frio da natureza

A testa não tinha uma gota de suor sequer. A noite paulistana também não dava motivos a isso: fazia frio. Era quinta-feira e as putas já marcavam presença à espera de carros de luxo. Em cada ponto da Praça da República, centro de São Paulo, a agitação de um dia normal de trabalho dava lugar a um vazio escuro e solitário. Pouca gente ainda resistia ao clima e à névoa que começava a deixar turva os prédios da metrópole.

- Cigarro?
- Não, obrigado.
O erro fora ter respondido ao rapaz encostado na parede. Sabia disso.
- Ei, você. Não fala assim comigo, caralho!
- Perguntei se tinha um cigarro, porra! Não se queria um, seu merda!

Nisso, o rapaz encostado fez sinal ao horizonte e, detrás das árvores escuras e antigas do local, surgiram mais dois. Um deles, com uma cicatriz no rosto, segurava um pedaço de pau. Em comum, havia neles a vontade de matar. Num lance rápido, aceleraram o passo e seguraram o braço do homem que passava. Os olhos dele denunciavam a aflição e a vontade de desaparecer. Não deu.

Empurrão. Queda. Bate-boca. Primeiro murro. No chão, retraiu-se instintivamente como se estivesse ainda no corpo de sua mãe. Sem tempo para pensar, veio o chute no centro do corpo, que deslocou o rim. O cuspe de sangue jorrou da boca seca, esbranquiçada. Depois, mais coronhadas, pauladas e chutes aumentaram o volume da dor, deixando-o cada vez mais indefeso, solitário. Os socos atingiram as costas, os chutes miravam as costelas, as pisadas acertavam o rosto. A mandíbula já estava fora do lugar, o ombro aparecia do lado, o osso da mão saltava, já sem carne.

O sangue vermelho se esparramava e manchava as mãos e o rosto dos três. Os urros de dor seguiam, porém mais abafados pelas pauladas no meio da cara. As mãos já não tinham força para defender o corpo, que começava a desistir. A força dos três, porém, não cessava. Aumentava. Do silêncio do parque e do ambiente cada vez mais entregue ao acaso só saía mais crueldade. O pau martelava o peito indefeso, quando veio o chute entre as pernas, no saco. A força cessou os gritos, mas ninguém ouviu. Somente os som das batidas, secas e surdas, saiam das sombras.

Os olhos permaneciam em pé. A boca tentava puxar o ar por entre o sangue e o desespero. O corpo estendido quase não respondia, mas nenhum deles viu. O que se enxergava ali era apenas um emaranhado de tecido vermelho, molhado e pesado. O cheiro exalado começava a perturbar, mas não os fazia parar. O pedaço de madeira já não dava mais conta e os pisões e murros passaram a ser as armas. Até que um deles teve a idéia abrir a cabeça do corpo. Por curiosidade, apenas.

Sem pensar, os três arrastaram o corpo pelos braços, riscando o chão de sangue. Próximo à sarjeta, então, a cabeça foi atirada na quina em um lance só. Da parte de dentro, veio o branco. Um branco amarelado que deslumbrou os três, fazendo-os parar. Passaram então a estudar o corpo estirado, com órgãos e cérebro expostos aos ratos que surgiam, chamados pelo sangue. O cheiro exalava prazer. Um alívio nunca visto antes. A ciência estava ali, agora a olho nu. As defesas já não existiam, só a da impunidade. E na testa de cada um, não se via uma gota de suor sequer.

Por Julio Simões, em 16 de maio de 2007.

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