O retrato e a parede

O retrato ainda permanece sobre a mobília. Sempre quando acendo a luz, logo ao abrir a porta, o vejo do outro lado, sob a mesa. É uma foto linda: seus cabelos negros e cacheados soltos, óculos de cineasta, expressão descontraída. Deslumbrante. Só que a imagem que me fica na memória é outra.

Aconteceu logo nos primeiros dias, no auge da relação. Não me lembro do diálogo - e isso não deve realmente importar. Só sei que ela ria com os lábios deliciosamente provocantes e tinha no jeito de olhar, contraindo as pálpebras, um ar encantador. Lembro-me que ria de alguma coisa em mim, pena não saber do quê.

Quando então me olhou nos olhos e abriu os lábios para uma nova gargalhada, a peguei pelo braço. Tentou se livrar colocando as mãos por trás das costas. Não deu. Envolvi assim uma mão pela cintura e a outra por entre os cabelos, desarrumando-os. Em segundos, estávamos com os corpos colados junto a parede mais próxima.

O movimento das bocas, das mãos e a sincronia dos corpos se aceleravam cada vez mais. Não havia tempo para respiração. Pressionava-a contra a parede da sala com ritmo único. Aquela mesma parede que, hoje, me trouxe tais lembranças. Quanto mais a comprimia em meus braços, mais ela me puxava para dentro.

Não demorou para as roupas virarem acessórios dispensáveis ali. No intervalo quase inexistente entre uma peça e outra, ainda recebi um sorriso de prazer indescritível por qualquer linguagem. Talvez o maior gesto de amor já sentido. E nem mesmo o fato de estarmos em pé atrapalhou a melhor noite de nós dois.

Com ela entre a parede e mim, descobrimos o que é ser um só. Entre pernas, pêlos, mãos, sorrisos, olhares, sons e desesperos, fomos felizes. Hoje, dela, só ficou um retrato sobre a mobília e a parede. Intactos na memória.

Por Julio Simões, em 8 de junho de 2007.

Películas verde-amarelas: Sem legendas

Dia desses, num café qualquer da região da avenida Paulista...

- Acho que vou no cinema hoje. É minha folga. Tô pensando em dois filmes - lancei na mesa.
- Ah, é? Aposto que são dois brasileiros - respondeu, em tom desafiador.
- Claro que não. Só um, acho.
- Viu? Pelo menos um. Quais são?
- Um é Proibido Proibir e o outro... não! os dois são brasileiros!
- Hahaha. Sabia.


Foi a partir desse diálogo que percebi que as minhas últimas idas ao cinema tinham sido para conferir a produção cinematográfica nacional. Nada de patriotismo, 'ame-o ou deixe-o' ou anti-hollywoodianismo. Apenas gosto das propostas, histórias e atuações brasileiras que, cá entre nós, melhoraram absurdamente desde O Quatrilho, dirigido por Fábio Barreto, lançado no longínquo ano de 1994 e indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro no ano seguinte.

Enfim. Pelo que lembro, o primeiro dessa série nacional recente que vi foi Baixio das Bestas, de Cláudio Assis. É forte, rude e faz questão de retratar aspectos do sertão nordestino que nenhum metropolitano imagina. Mesmo assim, sai do filme achando que aquilo tudo - cenas de sexo, violência explícita contra a mulher, sofrimento e humilhação - era só para chocar. Pura e simplesmente para deixar inquieto o espectador. Ainda assim, o filme tem valor. É bem gravado, tem bons atores e, se for essa a intenção, acredito que chega bem perto da realidade.

Depois, se minha memória não falha, fui conferir Cartola. O documentário sobre o sambista carioca da velha guarda da Mangueira ao menos cumpriu o que eu queria: conhecer mais do já falecido compositor. Porque de resto, o filme é monótono e pretensioso demais. Aquele que quer abraçar tudo ao mesmo tempo agora. E isso faz com que Cartola seja retratado em partes pouco aprofundadas, apesar das boa pesquisa de imagens e som feitas pela equipe. Mesmo assim, serviu para conhecê-lo melhor e aumentar a vontade de ir ao Rio de Janeiro.

Como terceira escolha recente de filme, fui a Proibido Proibir. Elogiado por uns, criticados por outros, cheguei ao cinema sem um conceito inicial de 'deve ser bom' ou 'é provável que seja ruim'. E foi melhor, porque consegui encontrar momentos bons e ruins. Destaco como positivo as referências e a representação do que é a política para os jovens deste início de século XXI, mas senti falta de um roteiro mais consistente. Mesmo assim, é melhor que cada um tire suas próprias conclusões. Em tempo: a presença da bela Maria Flor vale a ida a sala mais próxima.

Pois bem. Até agora foram estes, mas estou propenso a ir em outros dois, um deles com muita expectativa. Pode ser que vá assistir Meteoro, que retrata a vida de brasileiros - operários que vão construir uma rodovia, no caso - esquecidos numa região do nordeste durante a época da ditadura. Mas pode ser que veja Não por acaso, não por Rodrigo Santoro, mas pelo Elevado Costa e Silva, pela sinuca e pela temática do filme. Sim, é este que citei no diálogo inicial. E é este que espero com ansiedade desde que vi o cartaz, há algum tempo. Vamos?

A cura para todo mal

Dias desses recebi um comentário diferente em um dos posts deste modestíssimo blog. Era o Fábio, dos Pitacos, perguntando se eu não pensava em publicar meus contos em livros, tamanha a qualidade dos mesmos. Tirando o exagero dele nesta última parte, o resto da mensagem me fez pensar na utilidade que eu faço deste espaço. É uma coisa egoísta até, eu sei, mas é de extrema importância para mim.

Para explicar o efeito medicinal que os blogs (neste caso, o meu) têm na vida das pessoas (neste caso, a minha), recorro a uma historinha: no final do século passado, lá por meados dos anos 90, eu odiava algumas reportagens do Fantástico, principalmente as que tratavam de UFOs, ETs, OVNIs e todas outras siglas extraterrestres. Era sensacionalista, vai. E dava medo.

Eis então que o pequeno Julio, assustado com o tom "estamos sendo invadidos" da revista eletrônica semanal, criava artifícios para não perder o sono - e nem a aula na segunda-feira. Para isso, recorria e mentalizava pensamentos positivos. Neste caso, eu pensava no futebol. Entendam: estava na época em que o esporte bretão era jogado nas quadras de cimento batido e discutido com os amigos. Pensar isso, então, me distraia e tirava a tensão.

Da mesma forma é o blog agora. Com ele, exercito meus textinhos de terceira, criando estórias mirabolantes e me deliciando com o efeito que elas provocam nos poucos que lêem. Confesso também que quando alguém comenta algum post comigo, me sinto autor. Diferente da imparcialidade às vezes entediante do jornalismo. E é impressionante - e maravilhoso também - como podem existir múltiplas interpretações de uma mesma cena.

Mas aí publicar uma coletânea de textos deste blog já acho muita pretensão. Agradeço ao Fábio pela idéia, mas prefiro ficar apenas com os efeitos medicinais desta ferramenta moderna. A eficácia é tanta que até nem sei para quantas pessoas já recomendei ter um blog. Faz bem, acredite.

Pequenas teorias cotidianas I: All Star branco

Poucas pessoas reparam nos pés das pessoas, principalmente no que elas calçam. Eu também não, mas de um tempo para cá tenho formulado uma tese sobre calçados do sexo feminino: a teoria do All Star branco. O estudo nada científico se baseia exclusivamente em observação. Foram inúmeros exemplos colhidos antes da publicação deste documento, que promete abalar a comunidade científica internacional.

A questão tratada é que os tênis desta marca e da cor branca são, em quase todos os casos, um indicativo que a jovem portadora do calçado é interessante. Em outras palavras, as moças que exibem por aí um All-Star branco no pé são, a princípio, belas e simpáticas. Pode começar a reparar, meu caro. É sério: sempre quando simpatizo com uma jovem do sexo oposto por aí, constato que usa o tal tênis. Demorei para acreditar, mas faz sentido.

Explico: os tênis da marca All-Star são produzidos pela Converse, empresa norte-americana fundada em 1908 em Massachussets. Dentre os mais vendidos, estão as cores vermelhas, azuis e pretos. Como podem ver, nada de branco na lista. Até porque a cor suja fácil - talvez aí esteja o charme do próprio calçado, sei lá, mas não vem ao caso. Mesmo assim, isso foi encarado pelos pesquisadores como sendo um processo de seleção natural.

É provável que o fato das interessantes jovens usarem o tal tênis esteja ligado a vestimenta das mesmas e ao estilo moderno imposto pela globalização. Mesmo assim, por que então estas não optam por tênis desta marca, porém de outra cor? Por que branco, meu Deus? Segundo especialistas, a resposta está no inconsciente feminino, que vê na simplicidade do objeto um representação de si. Afinal, as mais interessantes são despojadas.

Enfim. Desde que cheguei a conclusão desta pequena tese cotidiana, não vejo mais os pés - última parte a ser observada pelo sexo masculino heterossexual - como simples suporte da estrutura humana. É parte integrante da personalidade, pelo menos a feminina. É de se admirar que só agora um estudo dessa magnitude tenha vindo a público. É tão importante quanto saber quais as conseqüências do derretimento das geleiras. Fundamental, diria.

O que se perdeu sem perceber

Depois de longos dias no mar calmo e sob céu claro, bonito até, aportei em uma ilha do mar do Norte, entre o estreito de Hahn e Salz. Provavelmente você não sabe onde fica, meu caro, mas é por ali. Deixei então a jangada de lado e pus-me a caminhar sem rumo, claro, afinal a ilha ainda era uma incógnita para mim. Areia branca, alguns coqueiros e cheiro de civilização mais adiante compunham o cenário. Não hesitei em continuar em frente e, quando vi, já estava em meio a casebres dispostos em ruas de pedras.

Era o centro da ilha de Córsega*, nome que descobri apenas quando resolvi tirar as botas numa espécie de saloon, ou melhor, bar. Só que o lugar, ao invés de bebidas e putas, oferecia cafés e doces. Sentei-me, então, em um banquinho de madeira já surrado e debrucei-me no balcão, à espera do antendente. No caso, um brutamonte enfiado dentro de uma camisetinha regata branca.

- Vai querer o quê? - perguntou ele, rude.
- Saber onde estou - respondi rápido - E um frappé de capuccino.

O brutamonte virou e começou a preparar o 'drink'. E eu ali, ainda à espera da resposta.

- Ei, não vai me responder? - gritei.
- Córsega - respondeu baixinho.
- Como?
- Córsega, ilha de Córsega. Independente há 20 anos, depois de séculos de colonização irlandesa - respondeu no mesmo tom agressivo, batendo a caneca sobre a mesa e derramando algumas preciosas gotas do líqüido.

Olhei em volta (agradeci o frappé antes, óbvio, para evitar conflito) e vi que algo estava fora da ordem. Havia um rebuliço em torno da grande mesa onde alguns homens praticavam o dominó, esporte local. Com muito custo, então, consegui chegar para ler a manchete do jornal do dia: "Hoje é dia de RISO: assaltante será executado no centro".

- RISO? - quebrei o silêncio, curioso com tal sigla.
- É. Repreensão Institucional Severa Obrigatória. Nossa maior punição, forasteiro - respondeu uma voz rouca e provavelmente já debilitada pelos anos de vida.

Naquela hora, já era conhecido por este apelido que, confesso, me incomodava. O ambiente não era hostil, porém, o público do lugar me olhava com desconfiança e pouco apreço.

- E em que consiste o tal RISO? - arrisquei-me a perguntar novamente.
- Ah, você vai poder conferir hoje em praça pública, meu filho - completou o dono da voz, um velho já corcunda pela idade, imagino.
- Que nada! Sou corcunda, amigo, justamente por efeito do RISO. O bom é que sobrevivi às fortes dores na barriga, mas não tive como evitar esse destino - respondeu ele, me fazendo perceber que pensei alto.

Só não pude perguntar o porquê nem as conseqüências da punição mais severa porque as badaladas do sino da igreja central romperam a conversa. O local, cheio de homens àquela hora da tarde, foi então se esvaziando instantaneamente. O brutamonte de camiseta branca já tocava os insistentes para fora quando cheguei à rua.

O que vi ali, então, foi uma verdadeira romaria. Homens e mulheres, jovens e idosos, todos caminhando na mesma direção. No rosto de cada um não havia outro sentimento senão o de alívio. Afinal, era mais um delinqüente que seria submetido ao castigo máximo da jovem nação. Provavelmente algo bem terrível, pensava eu, apesar de alguns jovens ao meu lado estarem classificando as últimas execuções como "muito engraçadas".

Chegando ao centro do vilarejo, o palco denunciou a execução. No meio dele, cinco moças com nariz de borracha vermelho pareciam prontas para começar o ritual. Penas e luvas eram apenas alguns dos objetos que elas traziam para o momento, apesar de algumas não terem nada além das próprias mãos para cumprir o desejo da população ali presente.

Eis que então, surge o homem condenado de um canto, o que leva o público ao delírio. Gritos, assobios, palavras de baixo calão davam o tom do espetáculo. A multidão já aguardava com ansiedade e suas carrascas já iam começar a sessão de desespero quando o acusado se revoltou e gritou:

- Mas por que cócegas, meu Deus?!? - surpreendeu o condenado, deixando perplexa a multidão - Será que não existe punição menos traumática do que essa?!?

E como nunca ninguém havia tido a coragem de enfrentar o triste fim, o homem teve espaço e tempo livre para discursar. Mesmo com as mãos e pés já amarrados, tinha a boca solta para despejar toda a indignação. O falastrão, que era cidadão do leste e tinha uma boina, fora acusado de um roubo. E insistia em dizer que não o havia cometido.

- Será mesmo que não há outro modo de punir seus infratores? Não defendo a absolvição dos crimes, mas peço que façam justiça e repensem a forma que vocês tratam os criminosos. É necessário pensar nos direitos dos humanos! Direitos humanos! - encerrou o condenado, já vermelho pela falta de fôlego e rouco por gritar à multidão.

Ao final, o homem foi ovacionado pelo público, que trocou as vaias do início pelas palmas ao pobre forasteiro de boina. Sua atitude corajosa diante das carrascas foi além: fez com que eclodisse um movimento popular para que o conselho geral trocasse a punição padrão da pequena nação e, conseqüentemente, adiasse sua "execução". O discurso fez tanto efeito que a medida passou unânime à votação.

A nova idéia, então, adotada pelos anciãos que compunham o conselho, fora trazida do exterior e, segundo dizem, vem sendo aperfeiçoada por algumas nações mais desenvolvidas ao norte da América. Não pude conferir com os próprios olhos sua implantação, afinal não eram mais realizadas em praças públicas. Também devo admitir que não fiquei por muito tempo na ilha e, com isso, só soube do novo método através da carta de um amigo que fiz por lá.

Pelo correio, soube que os condenados eram expostos a violência física e mental, principalmente por técnicas nada convencionais. Tudo isso realizado em calabouços secretos e durante vários dias seguidos. Dizia o amigo de Córsega que, segundo os boatos que corriam na ilha, os presos "tomavam tapas fortes e repetidos, eram surrados com bastões e ainda colocados à prova com choques elétricos e queimaduras".

É. Sem saber, talvez, o povo da inocente ilha de Córsega acabou trocando a inocência pelo terror. Perdeu, dessa forma, um pouco mais do encanto raro que tinha.

Por Julio Simões, em 9 de maio de 2007.

*As informações sobre a ilha de Córsega contidas no texto são todas fictícias. Segundo a Wikipedia, o território se localiza no Mar Mediterrêneo, ao sul da Itália, e pertence politicamente à França. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Córsega)