Cão

Há sempre uma semana do cão na faculdade.
Até mesmo em Jornalismo, acredite!
No meu caso, foi a última deste ano.
Agora acabou, acho.
Logo, posso voltar ao ócio (às vezes criativo).
De onde nunca devia ter saído.

Novas: Odeio diário, adoro Twitter (aka Direto da Redação).

12º andar: conheça o Piauí

Adoro elevadores. Embora seja um pouco contrangedor dividir um cubículo com um desconhecido (lê-se vizinho), é fato que a caixa de ferro rende algumas boas histórias, sem contar a expectativa da "parada" brusca e inesperada antes do destino (lê-se elevador quebrado). A postura, aliás, quase sempre é a mesma. No máximo, um bom dia. Sorriso? Nem sempre. Conversa? Só as de... elevador.

- Quando é que vai parar essa chuvinha chata, hein?
- Hã? Ah, sim. Não sei. Mas a previsão diz que deve continuar mais dois dias.

E é sempre assim. Depois da audácia de puxar assunto, o que vem é uma enxurrada de amenidades, que vão desde a previsão de tempo na sempre chuvosa São Paulo até a situação futebolística do Corinthians. Só uma vez ou outra é que aparecem assuntos diferentes durante o minuto de trajeto entre, no meu caso, o 12º andar do prédio e o térreo da alameda Santos.

- Ah, quando eu me aposentar vou dar o pé daqui. Não dá para aguentar esse clima não.
- Hum. Sempre essa chuvinha chata, né?
- É. Lá no Piauí não é assim, não. Lá é solão o ano interior, dá até pra fritar um ovo no asfalto.
- O senhor é de Teresina mesmo?
- Não, uma cidade ali do lado: Parnaíba. Teresina não dá para morar não, é muito quente.
[Térreo]
- Eu já estive em João Pessoa, na Paraíba...
- Ah, é ali pertinho. Mas o Piaué é muito bonito, viu? Tem a praia Luiz Correia, que é um lugar bom pra passear...
[Portão]
- Sei... e é barato, né?
- Ih, é baratinho. Vale a pena ir.
[Virada à esquerda: abortada]
- É, deve ser mesmo um bom lugar pra conhecer...
- É sim. Pega um avião que vai direto e pronto, está lá.
[Nova virada à esquerda: abortada]
- Ah, sim... bom saber disso.
- É isso aí, menino. O Piauí é um lugar que vale a pena conhecer...

Sem hesitar, o senhor de forte sotaque nordestino, bem vestido com uma camisa branca e calça social, atravessou a rua no farol aberto e só teve tempo de acenar um tchau, já um pouco mais íntimo do que qualquer balançar de cabeça. Nunca o vi por lá, não sei quem é e provavelmente não o encontrarei mais. É, mas tá aí uma boa opção de viagem: praia Luiz Correia, Teresina, Piauí. Anotei na mão para não esquecer e segui andando.

Memórias

Ela vai partir. Eu vou ficar. Ela vai pensar em mim o vôo todo. Eu vou dirigir desatento, tentando não chorar. Ela vai desembarcar em Lisboa ainda com o o gosto do beijo na boca. Eu vou abrir a porta do apartamento vazio e caminhar lentamente até o porta-retrato. Ela vai chorar sozinha no fim de cada dia. Eu não vou conseguir trabalhar, comer, viver.

- Fica, vai.
- Não posso, você sabe.
E depois do silêncio veio o abraço mais longo do mundo, seguido do beijo mais intenso do mundo. Pelo menos para eles.

Ela partiu. Eu fiquei. Ela pensou em mim o vôo todo, mas recorreu à bebida oferecida e até fez uma amizade. Eu dirigi desatento, quase bati o carro, mas cheguei a cidade com vontade de beber com os amigos. Ela desembarcou em Lisboa com o gosto do último beijo na boca misturado com o do uísque servido pela aeromoça arrogante. Eu abri o apartamento e só tive forças de cair no sofá, bêbado. Ela chorou baixinho, escondida no banheiro. Eu não consegui comer, trabalhar e viver. Ambos só por uma semana.

Hoje, duas semanas depois, não nos falamos mais.

Por Julio Simões, de Cumbica, em 21 de setembro de 2007.

Auto-crítica de mim mesmo

Passou a vida toda atrás do microconto. Morreu em branco.

É, Julio... pra você ver que dá pra escrever uma história com, no máximo, cinqüenta letras (regra número um dos adoráveis microcontos).

Então vê se aprende a escrever/enrolar menos por aqui, tá? Senão ninguém te lê, menino!

Ex

Fazia tempo que a gente não se via. Foi num supermercado que nem eu, nem ela frequentávamos.
- Rodrigo?
- Lívia!
E sem hesitar, os corpos se aproximaram, mas só os rostos se tocaram. E de leve.
- Há quanto tempo!
- É... há quanto tempo...
- Você parece desanimado, Rodrigo?
- Desanimado? Talvez.
Ela nunca me chamou de Rodrigo antes. No começo, era Assunção, o sobrenome, mas depois da festinha em que passamos uma hora agarrados no banheiro, passei a ser apenas Rô para ela. Agora, voltei ao status de Rodrigo.
- E como estão as coisas, hein? - perguntou ela, com aquele olhar lindo de curiosidade que só ela tinha.
- Ah, vou seguindo.
- Ainda na revista?
- Não. Deixei a vaga há oito meses. Estou escrevendo um livro agora.
A resposta saiu seca, de sopetão. Foi a única coisa que eu consegui dizer, quando na verdade queria falar "É, Lívia, desde que você foi embora, minha vida virou um inferno. Não deixei a vaga, fui demitido. E não tem livro nenhum, eu tô desempregado mesmo". Não disse nada disso, claro.
- Hum, pena. Mas tomara que dê certo então. Quero ler, hein! E não me deixa fora do lançamento, querido!
- Ah, pode deixar. Ainda devo ter seu telefone registrado no celular.
E tinha o celular, o telefone da casa, da casa da avó dela, o endereço, o e-mail, e até as referências para chegar à casa de campo. Todas na memória.
- Então tá, Rô. Me liga quando quiser, tá?
Confesso que o Rô me balançou, mas não havia mais nada a fazer. Eu queria, ela não.
- Tudo bem, Lívia. Ligo sim.
E os dois saíram com a sensação de que o próximo encontro só daqui uns mil anos. Quem sabe num desses supermercados que nenhum dos dois frequenta.

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Fazia tempo que a gente não se via. Foi num supermercado que nem eu, nem ele frequentávamos.
- Rodrigo?
- Lívia!
E sem hesitar, os corpos se aproximaram, mas ninguém teve coragem de tirar as mãos do carrinho de compras. Tive que tomar a iniciativa.
- Há quanto tempo!
- É... há quanto tempo...
- Você parece desanimado, Rodrigo?
- Desanimado? Talvez.
Apesar da coragem em abordá-lo e de toda a iniciativa, não consegui chamá-lo de Rô, o apelido carinhoso que mantive por quase dois anos. Afinal, há dez meses havíamos brigado e ele quase me agrediu. É, acho que foi melhor chamar de Rodrigo mesmo.
- E como estão as coisas, hein? - perguntei a ele, que mais parecia imerso num mundo paralelo. Ele sabe que eu adoro essa cara de contemplação, claro. E esses lindos olhos verdes, então! Canalha.
- Ah, vou seguindo.
- Ainda na revista?
- Não. Deixei a vaga há oito meses. Estou escrevendo um livro agora.
Ah, tá. Um livro!?! Ele nunca termina nada na vida e acha que agora vai conseguir lancar um livro?? Pfff. É essa falta de ação dele que me deixa puta, sabe? E pensar que foi por isso que brigamos...
- Hum, pena. Mas tomara que dê certo então. Quero ler, hein! E não me deixa fora do lançamento, querido!
- Ah, pode deixar. Ainda devo ter seu telefone registrado no celular.
Se ele ainda tinha, eu não sei. Só sei que eu ainda tinha o dele. E quase liguei duas vezes. Tempos de crise, né?
- Então tá, Rô. Me liga quando quiser, tá?
Droga. Rô não! Burra.
- Tudo bem, Lívia. Ligo sim.
E os dois saíram com a sensação de que o próximo encontro só daqui uns mil anos. Quem sabe num desses supermercados que nenhum dos dois frequenta.

Por Julio Simões, em 23 de outubro de 2007.

Por um fio

31 de março de 1964. Sob a justificativa de um iminente avanço comunista no Brasil, os militares decidiram pela interrupção do governo do então presidente João Goulart (mais conhecido como “Jango”) por meio de um golpe de estado. A partir daí, o país viveu uma dos períodos mais complicados de sua história, em que a perseguição implacável aos apontados como “simpatizantes ao comunismo” e a repressão aos órgãos de imprensa eram práticas comuns.

O golpe, no entanto, não foi algo repentino. O contexto internacional da Guerra Fria – disputa silenciosa entre Estados Unidos e União Soviética, nações posicionadas a favor do capitalismo e do comunismo, respectivamente – e as tendências esquerdistas de Jango ajudaram a construir um cenário propício para o golpe.

Porém, o início da derrocada do regime se deu anos antes, em 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo alegando a pressão de “forças terríveis” e o vice João Goulart foi impedido de assumir por estar em viagem à República Popular da China. Neste momento, Ranieri Mazzili assumiu provisoriamente a função, mas uma campanha liderada por Leonel Brizola devolveu a Jango o direito de ser presidente. Contudo, decidiu-se pela mudança de regime político (parlamentarismo), o que acabou enfraquecendo a posição reassumida pelo ex-vice de Jânio Quadros.

Em 1963, entretanto, as pressões contra o novo regime aumentam e provocam a realização de um plebiscito para escolher entre a manutenção do parlamentarismo e a mudança ao presidencialismo. Com a vitória da segunda opção, Jango voltou ao poder, posição que ocupou apenas até o dia 31 de março de 1964. Neste dia, foi instaurado o regime militar no Brasil, que duraria até 1985, com a redemocratização alcançada pela campanha popular das “Diretas Já”.

As conseqüências imediatas do dia do golpe também refletiram em todo o país. Enquanto as tropas buscavam Jango, que se refugiava no Rio Grande do Sul, outras cidades do país também iniciavam sua “caça às bruxas”. Até mesmo a pequena Promissão, localizada a noroeste da capital São Paulo e com cerca de 20 mil habitantes na época, sofreu com a perseguição aos “simpatizantes do comunismo”.

Em Promissão, assim como em grande parte das cidades interioranas de pequeno e médio porte, era comum que se discutisse política nas mesas dos bares, em debates acalorados regados a café, sanduíches e refrigerantes. Nestes lugares, reuniam-se professores, advogados, intelectuais e estudantes, que formavam grupos de opiniões geralmente favoráveis às idéias esquerdistas (reforma agrária e nacionalização de setores da economia) e acabavam conflitando com aqueles que as rejeitavam.

Um dos participantes esquerdistas destas rodas políticas era M.*, de 29 anos. Professor de segundo grau, lecionava sociologia há dois anos em um colégio público da cidade e era casado há sete com a também professora C.*, com quem já tinha dois filhos gêmeos. O terceiro filho do casal, aliás, estava perto de nascer.

Nesta época, um núcleo do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), formado na cidade principalmente por comerciantes, fazendeiros, sitiantes, religiosos e políticos, todos contrários ao comunismo, reuniram-se para listar aqueles que eram considerados uma “ameaça” à nova ordem. Em uma primeira “varredura”, o nome de M. figurou na lista dos promissenses ligados ao comunismo.

Logo no dia seguinte ao golpe, o grupo direitista assumiu a função policial e passou a prender os membros listados na cadeia local. Naquela tarde, o escrivão da delegacia da cidade era um dos responsáveis por localizar os listados e relatar ao grupo, para posterior prisão. Seu primeiro alvo foi, então, o clube social no centro da cidade, local de grande movimento e freqüentado principalmente por jovens.

Logo na entrada, o escrivão deparou-se com M., que o cumprimentou amistosamente. Após realizar a vistoria nas piscinas e nos bares, deixou o recinto com a missão cumprida. M., por sua vez, só ficou sabendo da onda de prisões na cidade à noite, quando passou na casa dos pais e ficou sabendo que seu irmão A.* estava entre os detidos.

Temendo ser o próximo da lista, M. ficou mais recluso do que a rotina o obrigava, principalmente porque as aulas naqueles dias foram suspensas devido a instabilidade política no município. Neste período, o professor chegou a queimar alguns livros de sociologia e política, que poderiam servir como prova contra ele caso acabasse preso pelo CCC.

No terceiro dia de perseguição, as famílias das vítimas começaram a pressionar o prefeito Antônio Figueiredo Navas pela libertação dos prisioneiros políticos. O administrador decidiu então consultar o governador Adhemar de Barros sobre esta possibilidade, indo inclusive ao seu encontro, em São Paulo. Dias depois, na volta da viagem, veio a aguardada notícia: Navas conseguira a autorização e ordenou a liberação imediata dos presos.

Com a ordem dada pelo prefeito, os ânimos se acalmaram em Promissão. O que M. não entendia, porém, era porque havia sido poupado pelos membros do CCC. Tempos depois, soube que seu nome, na verdade, havia sido riscado da lista pelo cunhado, que fazia parte do grupo de perseguidores. Tudo por um só motivo: R., a primeira filha de M., que nasceu 25 dias após o professor quase ter sido preso por comunismo.

*Esta é uma obra de ficção baseada em fatos reais. Para preservar a identidade das pessoas envolvidas, os nomes verdadeiros foram omitidos e trocados por letras.

Por Julio Simões, em 4 de novembro de 2007

À mostra

Depois de ter assistido apenas ao excelente Trem da Vida no Masp durante toda a Mostra do ano passado, este ano compareci a cinco filmes. Se você pensar bem, quintupliquei a minha marca anterior (dizem que contar filmes é cult, né? rá!) e ainda vi dois filmes que aposto serem fortes candidatos a prêmio. Um bom saldo para quem tem vida fora do festival.

O primeiro que vi foi Sonhando Acordado, um dia depois de abortar a sessão do argentino Las vidas posibles. E a Mostra, para mim, começou da forma mais tradicional possível: com o sol a pino fritando os miolos e alguma confusão. Mesmo assim, nem as fãs de Gael nem a desorganização do péssimo Cinesesc me impediram de assistir a um filme sensível, simples e muito bem feito. Um bom exemplo de como se faz cinema com criatividade em cima de uma história comum, explorando bem o limite mínimo existente entre sonho e realidade.

No dia seguinte, nova experiência no vão livre do Masp. O lugar não chega a ser uma sala de cinema propriamente dita, tem barulho de carros e ônibus passando, mas ainda assim é interessante assistir a um filme enquanto o mundo acontece em volta. A chuva que caiu no dia e as crianças presentes (que sempre demonstram as emoções de forma mais verdadeira possível) também transformaram a sessão da aguardada animação nacional Garoto Cósmico em um evento marcante na minha Mostra. E a sessão aconteceu com a presença do diretor Ale Abreu, todo orgulhoso do "filho" que levou sete anos para ficar pronto.

Depois, fui assistir a comédia francesa La Créme, sobre um pai de família desempregado que ganha de Natal um creme mágico que o torna conhecido, praticamente uma celebridade instantanea, com todas as suas vantagens e desvantagens. O filme é engraçado, tem boas sacadas e superou as minhas expectativas, que são sempre ruins quando se fala em cinema frances. O melhor de tudo, no entanto, foi ver que é possível fazer um bom filme com pouco recurso. Basta ter uma grande idéia. Mais uma vez o diretor - o frances Reynald Bertrand, que tambem é responsável pela montagem, pelo roteiro e pela fotografia - esteve presente na sessão e comentou justamente o fato de não ter tido recursos e mesmo assim ter conquistado espaço em festivais, como a Mostra.

Dias depois, fui ver o aguardado O Banheiro do Papa, uma parceria entre Uruguai e Brasil que retrata a situação da pequena cidade uruguaia Melo, localizada na divisão com o Brasil. Lá, a pobreza do país vizinho é evidente e bem retratada, sem apelação. A história, entao, gira em torno da visita do Papa Joao Paulo II ao vilarejo em 1989, que passa a ser a chance de dinheiro extra para a fragilizada população do municipio. Acredite: o filme é lindo, tanto pela estetica quanto pela narrativa. E é essa junção que eu acho que vai ganhar algum premio - o texto levou tanto tempo para ser escrito que o filme já ganhou, o do júri especializado!

No mesmo dia, acabei entrando sem pretensoes na sessao de Pequenas Historias, filme brasileiro de Helvecio Ratton - que esteve na sala para apresentar ao publico sua criaçao, voltada para as crianças, mas acessível também para aqueles que as levam ao cinema - que reune quatro contos curtos que parecem mais lendas. Sob a justificativa de quem conta um conto aumenta um ponto, Marieta Severo conduz e costura uma série de capítulos sensíveis e dotados de moral. Se nem todos são tão bons, vale destacar aqueles em que atuam os brilhantes Gero Camilo e Paulo José.

Por fim, fiz da minha última ida a Mostra mais uma chance de ver um filme nacional: Estômago. No começo, achava que o filme seria mais um daqueles novelescos típicos da GloboFilmes, mas a historia vai ganhando forma e, especialmente pela maneira como é contada, se torna diferente do habitual, o que já é um ponto positivo. Além disso, o elenco - as revelaçoes João Miguel e Fabiula Nascimento, especialmente - corresponde e torna o filme uma grata surpresa. Sai achando que seria um forte concorrente para o premio de melhor pelicula brasileira, mas Estórias de Trancoso foi o escolhido.

Enfim, foram bons dias indo ao cinema com pretensoes minimas para depois acabar se surpreendendo com quase tudo. Agora, caro leitor cinefilo, é buscar manter o desempenho de filmes vistos no ano que vem e chegar mais perto nos chutes dos premiados. Até lá.