De cara com o cara

Eu voltei, agora pra ficar
Porque aqui, aqui é o meu lugar
O Portão - Roberto Carlos

O corredor era longínquo, mal iluminado e velho. Eu não sei como cheguei ali, mas a questão não era propriamente essa. O fato é que eu estava naquele lugar estranho e fui informado por uma voz não identificada que deveria comparecer à uma porta cujo número eu já não lembrava. Andava praticamente sem rumo, embora a única direção possível fosse ir reto. Minutos depois de caminhar, encontrei o lugar. Abri a porta com cuidado, receoso com o que poderia acontecer. Lá dentro, nada. Isso mesmo: nada. Apenas uma sala ampla, iluminada com lâmpadas fluorescentes e com as paredes em uma cor meio bege. Demorei um pouco para reparar que, bem no fundo do salão, havia uma mesa.

Sob ela, só um porta-canetas do Corinthians parcialmente vazio, um calhamaço de papel e um cinzeiro recém-usado. Enquanto viajava naquela visão que mais parecia uma agência de publicidade de tão clara e limpa, acabei sendo surpreendido por ele. Ele? Um cara alto, um tanto forte e com a barba mal feita. Depois de me olhar desconfiado, foi para trás da mesa e sentou.

- Então você é o Julio? - perguntou.
- So...sou - gaguejei.
- Hummm, Juuuuulio - confirmou ele, tomando o calhamaço na mão e procurando algo.
- Isso mesmo.
- Julio, né?
- É, Julio

Depois desse estúpido contato inicial, o grandalhão sentou na mesa, puxou o maço de cigarro e fitou-me por longos minutos.

- O que você fez, hein mano?
- Eu? Nada. Só me distraí, tropecei num extintor que insistem em esconder nos cantos e acabei batendo com a cabeça na parede.
- Uh - encolheu-se, quase tendo calafrios com a descrição da tragédia - Olha, não sei bem se você tem motivo para estar aqui, sabe?
- Ah é?
- Você nunca fez nada tão grave, nunca produziu nada muito relevante, nunca cometeu crimes, não teve filhos, não escreveu um livro e tampouco plantou uma árvore.
- Ok, ok. Só não precisa jogar na cara, né?
- Tá, pode deixar.
- Mas, meu caro, por que eu estou aqui nesse lugar que, à propósito, eu nem sei o que é.
- Ok, vou te explicar. Você morreu, tá ligado? Sabe morte, manja?
- Oh!
- Mas não se assuste, viu! Aqui é a última parada antes do céu ou do inferno.
- Tipo juízo final, é?
- É. Tinha esquecido que na Terra ainda chamam esse lugar assim. Eu costumo chamar carinhosamente de "Ou vai ou racha".
- Ha ha ha.
- Maaaaas, como você ainda tá extendido no chão, eu posso te mandar de volta.
- Pode? Manda! Manda!
- Hum, vamos ver.

E o senhor desconhecido fez uma cara estranha, meio blasé até. Depois do charminho, disse que me mandaria de volta com uma única condição.

- Qual? Qual?
- Que você pare de frescura, tá ligado?, e que volte com aquela merda que você costuma chamar de blog. Desovo, não é?
- Despojo.
- Isso, Desgosto.
- ...
- Agora volta, vai - disse, me dando um último tapa nas costas, com força - Que eu preciso ver o último capítulo da novela das oito...

E neste momento, como num filme da Disney, uns pivetes vestidos com asas provavelmente compradas em uma famosa rua de comércio ilegal de São Paulo me pegaram pelo braço e, com uma força descomunal para pivetes, me jogaram céu abaixo. Agora, cá estou. De volta, apesar do galo na testa.

Por Julio Simões, em 4 de outubro de 2007.

7 comentários:

Camila Dayan disse...

Ufa, que bom que o dsovo, desgosto; ops despojo voltou, rs. Estava na hora meu caro, aproveite essa chance que o juízo final lhe deu, não abuse da sorte e viva pelo, por, através e com o Despojo.
O amigo D'propósito veio visitar várias vezes enquanto estava em coma, mas claro, vc não viu.
Então, seja bem vindo, de novo a vida.

Felipe Held disse...

É sempre bom tirar um tempo do blog para espairecer.

Só que o retorno é ainda mais divertido.

Anônimo disse...

Hahahaha!

Faço minhas as palavras do Held. Se manter o blog é condição para não morrer...

Milly disse...

Uia. Você voltou mesmo! êêêê.
Aliás, ressurgiu muito modestamente, depois de tropeçar em um (?) extintor.
Gostei do texto, mas vc não vai ficar bravo se eu comentar que por acaso me lembrou muuuito aquele curta de animação chamado "Limbo", né? Hum.. sei, Julio... haha!

Beijos e vê se não abandona o despÓjo! ;)

Anônimo disse...

Boa, cara! Bem-vindo de volta! E sorte a nossa.

Julio Simões disse...

Direito de resposta:

Conforme me "denunciaram" aí, dizendo que havia semelhança entre o continho sobre a minha quase chegada ao céu/inferno e um curta de animação chamado "Limbo", venho esclarecer que há, sim, um quêzinho de inspiração no filme.

Não posso negar isso, mas há diferenças e originalidades entre os dois. Para conferir é fácil: acesse o videozinho (tem seis minutos, vai, é pouco) no fenômeno Iutúbe (or YouTube for americans)

http://www.youtube.com/watch?v=B3VoVhWWy28

Obrigado.
Julio

Jo disse...

brilhante forma de ressucitar.
como minha avó costuma dizer, "que seja em boa hora". e sem mais frescuras, tá ligado?