O menino e o cão

Alto aqui do sétimo andar
longe, eu via você

e a luz desperdiçada de manhã

no copo de café

Do sétimo andar - Los Hermanos


Era o pior Natal de todos os tempos. Colocou a camisa social azul-marinho que ganhara para a ocasião e, finalizando o vestuário, tentou sorrir para o espelho. Não deu. O sorriso saiu assim, meio torto, sem sal. Tudo bem. André não tinha mesmo o que comemorar. A mãe, do lado de fora, já falava alto alguma coisa sobre o horário. Abriu a porta e disfarçou a vontade de chorar. Não queria preocupá-la.

Na sala pequena e confortável, a família estava toda reunida. O pai, alto, moreno e levemente barrigudo, tentava abrir a garrafa de vinho, sob a expectativa dos tios e dos avós. Todos riam e brincavam com a inabilidade do anfitrião, mas André ouvia tudo abafado. Estava ali, mas não estava. A mãe, depois de conferir orgulhosa o figurino do filho único, correu para a cozinha verificar se o pino do peru já havia desgrudado da carne, oficializando o início da ceia. Lá, as tias todas já paparicavam alguma coisa sobre a novela das oito.

Num dos cantos, havia uma árvore. Tradição da família desde sempre, lá estava ela: alta, próxima de alcançar o teto da sala de estar, com bolas vermelhas, cinzas e brancas, rodeada de fios reluzentes. André, parado no canto oposto, admirava a árvore preparada por si mesmo e pela mãe como se não fosse dono. O apartamento todo, aliás, não parecia ser seu lar. Para ele, faltava algo. E ele sabia o que era, embora tentasse esquecer.

Tudo aconteceu em um sábado de sol agradável, daquele que não machuca e que inspira caminhadas em parques. Foi nesse dia que, com a permissão da mãe, decidiu descer os sete andares para passear com Bilu, um poodle toy frágil, com a cara de quem precisa ser cuidado todas as horas do dia, com o perigo de perder-se no mundo. O cãozinho era mesmo frágil, tinha alguns problemas de nascença. Mas fora o melhor presente que André ganhara na vida.

Naquela tarde até então agradável, André calçou a sandália, pôs o short e, mesmo contra a vontade, aceitou a sugestão da mãe em colocar uma regata. Feliz com a aventura que estaria por vir, o pequeno desceu pela escada acompanhado pelo saltitante companheiro. Uma vez na rua, deixou a coleira de lado e permitiu que Bilu tomasse um ar. Foi o erro. O cão correu para a esquina, talvez atrás de um poste. De repente, sem que André pudesse pensar, um carro escuro parou, um moleque cabeludo - filho da puta! - desceu e, sem olhar para os lados, pegou Bilu com uma mão, entrou no carro e saiu em disparada.

Inconsolável, André pensou em pedir ajuda a quem passava, mas não havia ninguém na rua. O porteiro, pouco solicito, deu de ombros. No máximo, interfonou para a mãe do menino para comunicar o ocorrido. Passaram-se quase seis meses e, desde então, André vive um pouco mais triste. O sentimento de perda, para ele, parecia irremediável. Os pais fizeram de tudo, mas o órfão do cão não tinha vontade de sair do quarto. Há pouco tempo atrás é que voltou, ainda meio ressabiado, ao cotidiano normal.

E aquele Natal não teria graça nenhuma sem Bilu. A história do desaparecimento do cão de estimação não lhe saía da cabeça desde aquele sábado ensolarado. Antes de dormir, repetia sem querer a cena, enchia os olhinhos de lágrimas e dormia. Nem os avisos para a vizinhança, nem os cartazes feitos a mãe espalhados pela redondeza trouxeram de volta Bilu.

Agora estava ali, encostado na parede, vendo a família comemorar o Natal. Os minutos em que ficara paralisado, repassando pela milésima vez o episódio, chamaram a atenção da tia, que o colocou em algum assunto falado no sofá. André sorriu, conseguiu comentar algo coerente e saiu à francesa para a cozinha. Não tinha fome, e então voltou à sala, onde encontrou no tapete macio um bom lugar para deitar. Na tevê, algum especial de fim de ano que odiava, mas pelo menos o tirava daquele Natal sofrível.

Os olhos pesaram e ele quase caiu no sono. Um barulho de campanhia e um chamado do tio o chamaram a atenção. "André, venha cá!", ordenou a voz, que demorou a identificar. "Seu pai chegou e está te chamando aqui", completou. O menino levantou levemente cambaleante, esfregou os olhos com as mãos e não viu aquilo. Nas mãos do pai estava ele, Bilu. Sorridente como sempre, impaciente como sempre. André tentou correr, mas as pernas lhe traíam. Tanto que houve tempo para o pai caminhar da porta para o centro da casa, onde ele já era o centro das atenções.

"Filho, é teu", disse o pai, evitando maiores discursos por saber que não conteria as lágrimas. As tias, que naquele momento haviam largado a fofoca na cozinha para acompanhar o evento, também tinham os olhos marejados. Os avós tinham no rosto um ar contemplativo, aquele que só os avós sabem fazer com maetria, aquele em que entorta-se o rosto como quem diz "como é boa essa tal de felicidade". A mãe, ainda com o avental e com o pano de prato nas mãos, não teve ação para nada. Chorou copiosamente.

André, que não viu a reação de nenhum dos presentes ali, mantinha os olhos fixos no olhar do cão. Ele estava de volta. Ele, branco, pequeno, sorridente. Ele, Bilu. Quando o pai passou o filhote para o filho, André o tomou nos braços e, bem baixinho, só conseguiu dizer: "Eu sabia que você voltaria, Bilu, eu sabia". E em seguida comprimiu os braços que já envolviam o cãozinho, quase sufocando-o com a injeção de carinho e felicidade que o tomava. Era o melhor Natal de todos os tempos.

Por Julio Simões, em 25 de dezembro de 2007.

2 comentários:

Felipe Held disse...

Dizer que o texto ficou sensacional mais uma vez seria repetitivo. Genial copiaria o jargão Canóstico.

Mas confesso que, depois de lê-lo, saí do quarto, fui pra sala e dei um abraço no meu cachorro.

Excelente, cara!

Anônimo disse...

Excelente, simples e belo, inspirador e inspiradíssimo. Padrão Júlio Simões de qualidade, as always.

Até alguém como eu, que não gosta de cachorro (tá, eu sei, vai entender, né...), é capaz de se emocionar.

Feliz 2008, rapaz! Abraço.