O que se perdeu sem perceber

Depois de longos dias no mar calmo e sob céu claro, bonito até, aportei em uma ilha do mar do Norte, entre o estreito de Hahn e Salz. Provavelmente você não sabe onde fica, meu caro, mas é por ali. Deixei então a jangada de lado e pus-me a caminhar sem rumo, claro, afinal a ilha ainda era uma incógnita para mim. Areia branca, alguns coqueiros e cheiro de civilização mais adiante compunham o cenário. Não hesitei em continuar em frente e, quando vi, já estava em meio a casebres dispostos em ruas de pedras.

Era o centro da ilha de Córsega*, nome que descobri apenas quando resolvi tirar as botas numa espécie de saloon, ou melhor, bar. Só que o lugar, ao invés de bebidas e putas, oferecia cafés e doces. Sentei-me, então, em um banquinho de madeira já surrado e debrucei-me no balcão, à espera do antendente. No caso, um brutamonte enfiado dentro de uma camisetinha regata branca.

- Vai querer o quê? - perguntou ele, rude.
- Saber onde estou - respondi rápido - E um frappé de capuccino.

O brutamonte virou e começou a preparar o 'drink'. E eu ali, ainda à espera da resposta.

- Ei, não vai me responder? - gritei.
- Córsega - respondeu baixinho.
- Como?
- Córsega, ilha de Córsega. Independente há 20 anos, depois de séculos de colonização irlandesa - respondeu no mesmo tom agressivo, batendo a caneca sobre a mesa e derramando algumas preciosas gotas do líqüido.

Olhei em volta (agradeci o frappé antes, óbvio, para evitar conflito) e vi que algo estava fora da ordem. Havia um rebuliço em torno da grande mesa onde alguns homens praticavam o dominó, esporte local. Com muito custo, então, consegui chegar para ler a manchete do jornal do dia: "Hoje é dia de RISO: assaltante será executado no centro".

- RISO? - quebrei o silêncio, curioso com tal sigla.
- É. Repreensão Institucional Severa Obrigatória. Nossa maior punição, forasteiro - respondeu uma voz rouca e provavelmente já debilitada pelos anos de vida.

Naquela hora, já era conhecido por este apelido que, confesso, me incomodava. O ambiente não era hostil, porém, o público do lugar me olhava com desconfiança e pouco apreço.

- E em que consiste o tal RISO? - arrisquei-me a perguntar novamente.
- Ah, você vai poder conferir hoje em praça pública, meu filho - completou o dono da voz, um velho já corcunda pela idade, imagino.
- Que nada! Sou corcunda, amigo, justamente por efeito do RISO. O bom é que sobrevivi às fortes dores na barriga, mas não tive como evitar esse destino - respondeu ele, me fazendo perceber que pensei alto.

Só não pude perguntar o porquê nem as conseqüências da punição mais severa porque as badaladas do sino da igreja central romperam a conversa. O local, cheio de homens àquela hora da tarde, foi então se esvaziando instantaneamente. O brutamonte de camiseta branca já tocava os insistentes para fora quando cheguei à rua.

O que vi ali, então, foi uma verdadeira romaria. Homens e mulheres, jovens e idosos, todos caminhando na mesma direção. No rosto de cada um não havia outro sentimento senão o de alívio. Afinal, era mais um delinqüente que seria submetido ao castigo máximo da jovem nação. Provavelmente algo bem terrível, pensava eu, apesar de alguns jovens ao meu lado estarem classificando as últimas execuções como "muito engraçadas".

Chegando ao centro do vilarejo, o palco denunciou a execução. No meio dele, cinco moças com nariz de borracha vermelho pareciam prontas para começar o ritual. Penas e luvas eram apenas alguns dos objetos que elas traziam para o momento, apesar de algumas não terem nada além das próprias mãos para cumprir o desejo da população ali presente.

Eis que então, surge o homem condenado de um canto, o que leva o público ao delírio. Gritos, assobios, palavras de baixo calão davam o tom do espetáculo. A multidão já aguardava com ansiedade e suas carrascas já iam começar a sessão de desespero quando o acusado se revoltou e gritou:

- Mas por que cócegas, meu Deus?!? - surpreendeu o condenado, deixando perplexa a multidão - Será que não existe punição menos traumática do que essa?!?

E como nunca ninguém havia tido a coragem de enfrentar o triste fim, o homem teve espaço e tempo livre para discursar. Mesmo com as mãos e pés já amarrados, tinha a boca solta para despejar toda a indignação. O falastrão, que era cidadão do leste e tinha uma boina, fora acusado de um roubo. E insistia em dizer que não o havia cometido.

- Será mesmo que não há outro modo de punir seus infratores? Não defendo a absolvição dos crimes, mas peço que façam justiça e repensem a forma que vocês tratam os criminosos. É necessário pensar nos direitos dos humanos! Direitos humanos! - encerrou o condenado, já vermelho pela falta de fôlego e rouco por gritar à multidão.

Ao final, o homem foi ovacionado pelo público, que trocou as vaias do início pelas palmas ao pobre forasteiro de boina. Sua atitude corajosa diante das carrascas foi além: fez com que eclodisse um movimento popular para que o conselho geral trocasse a punição padrão da pequena nação e, conseqüentemente, adiasse sua "execução". O discurso fez tanto efeito que a medida passou unânime à votação.

A nova idéia, então, adotada pelos anciãos que compunham o conselho, fora trazida do exterior e, segundo dizem, vem sendo aperfeiçoada por algumas nações mais desenvolvidas ao norte da América. Não pude conferir com os próprios olhos sua implantação, afinal não eram mais realizadas em praças públicas. Também devo admitir que não fiquei por muito tempo na ilha e, com isso, só soube do novo método através da carta de um amigo que fiz por lá.

Pelo correio, soube que os condenados eram expostos a violência física e mental, principalmente por técnicas nada convencionais. Tudo isso realizado em calabouços secretos e durante vários dias seguidos. Dizia o amigo de Córsega que, segundo os boatos que corriam na ilha, os presos "tomavam tapas fortes e repetidos, eram surrados com bastões e ainda colocados à prova com choques elétricos e queimaduras".

É. Sem saber, talvez, o povo da inocente ilha de Córsega acabou trocando a inocência pelo terror. Perdeu, dessa forma, um pouco mais do encanto raro que tinha.

Por Julio Simões, em 9 de maio de 2007.

*As informações sobre a ilha de Córsega contidas no texto são todas fictícias. Segundo a Wikipedia, o território se localiza no Mar Mediterrêneo, ao sul da Itália, e pertence politicamente à França. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Córsega)

4 comentários:

Diana disse...

É verdade. Eu só entrei aqui e li o texto pq eu queria responder seu comnetário. Mas aproveitei e LI, de fato, o texto. E tenho uma coisa a dizer: "quando cheguei a rua"- à rua! com crase!
hehe brincadeira. Eu não quero escrever muito agoa, 1o pq hj eu to num dia melancólico, como disse meu post, e posso acabar sendo piegas demais, uma espécia de carinhoso tragicômico. Tenho a impressão de q vc entendeu o que eu quis dizer. 2o pq esse blog não deixa de ser um espaço píblico, e, sim, fico sem jeito. Então sendo bem breve:
tbm acho muitas vezes que nos parecemos bastante. mas... é, me cobra isso depois, pq só ao vivo mesmo... o ponto é q é sempre bom ler/ouvir (mesmo q já se saiba) q alguém gosta de vc, principalmente quando vc tbm gosta desse alguém. Seu comentário me deixou feliz e é isso que importa. E gosei muito da sua história, de verdade. Aposto q vc pensa em escrever um livro, como eu tbm penso. Não? Pois devia... Eu tava pensando agora q cada pessoa tem um jeito melhor de mostrar aos outros quem ela é de verdade. Tipo, tem gente que mostra pelas roupas que usa, ou por atitudes, por telefonemas, por sorrisos, por desenhos, por música... a gente mostra pela escrita. Posso estar exagerando, de repente vc nem acha isso, mas pelo menos pra mim escrever é... tudo. Só escrever, não preciso de público. Mas ESCREVER é necessário...

beijos, ju. Daqui a pouco o comenário tá maior que o post.

Jo disse...

olha só o que temos por aqui!!!
leio depois a versão final, e comento depois.

bjos
(Josie.Josie.Josie.hehe)

Anônimo disse...

necessario verificar:)

Anônimo disse...

Genial brief and this enter helped me alot in my college assignement. Thanks you on your information.