Caba da peste

- Cê já se apaixonou, Julio? - pergunta o forte sotaque nordestino, enquanto terminava de limpar a coleção de garrafas.
- Já - respondo surpreendido, por trás do jornal aberto.
- E foi respondi... respondi...
- Correspondido?
- É. Eu num sei falar essa coisa aí.

Conversas como essa não são freqüentes de acontecer em casa, mas não sei por quê eu gosto muito delas. Não pelo conteúdo, muitas vezes constrangedor, mas pela interlocutora: Lúcia, a diarista que há quatro anos salva a república toda terça e quinta-feira. Baixinha e corajosa, deixou o interior de Pernambuco muito pequena para tentar a sorte na cidade grande e, desde então, trabalha cada vez mais. Ao todo, são incontáveis "patroas" divididas entre os seis dias da semana - aos domingos "só quando alguém pede para ajudar", segundo ela mesma explica.

Lúcia é simples, por isso verdadeira. Toda terça e quinta, religiosamente, pede para achar para ela os números da Mega-Sena no jornal. Ao ver que não foi contemplada, comenta o desempenho um pouco decepcionada, mas já com as esperanças já renovadas para o próximo concurso. "Ih, nem perto. Não foi hoje que eu fiquei rica", responde sorrindo, expressão que mantém sempre exposta no rosto. Apesar do sonho, Lúcia sabe que é complicado acertar os numerozinhos e por isso segue no trabalho que, mesmo árduo, a satisfaz.

- E então, cê foi respondi... respondi...
- Correspondido?
- Isso. Respondido.
- Sim e não.
- Eu não vou nunca se apaixonar, não. Só dá problema.
- Que isso, Lúcia!
- É. Teve uma vez que um coroné - é assim que se diz, é?
- Coronel, Lúcia. Coronel.
- Isso. Teve um que se apaixonou por mim. Eu era novinha ainda, tinha uns 16 anos, era bonitinha. Mas eu não queria não, falei para ele que não gostava dele e não queria só o dinheiro dele.
- Ah, é?
- É. Ele até me agradeceu porque eu falei a verdade. Mas tudo bem. Naquele tempo eu até chamava atenção, hoje eu tô uma tragédia.

Lúcia é assim mesmo, divertida. Não perde uma chance de tirar sarro de qualquer coisa e ainda repete alguns rituais, como pedir para escrever a lista do supermercado para ela. É notável sua dificuldade com as palavras, já que teve pouco tempo para o estudo. Anos atrás, até insistiu na alfabetização e treinava nas listas de mercado, mas creio que tenha abandonado as aulas. As palavras mais complexas, então, se transformam na boca dela. Orégano, por exemplo, se simplifica em oréga.

Às vezes, Lúcia também relembra do tempo de criança, em que já trabalhava forte no interior de Pernambuco. Com um pouco de saudade sim, mas sem nenhuma vontade de voltar. Pelo menos não agora. "É muito pobre lá, filho", explica. Ela é assim mesmo, sensível e alegre. E talvez seja por isso que as conversas com ela sejam tão interessantes. Seja sobre as notícias no jornal, o passado ou o futuro. Minha vontade, confesso, era fazer um filme sobre ela. Mais precisamente sobre o contato dela com coisas que nunca teve, como o cinema. Mas isso é uma outra história, muito menos interessante que a dela.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Julio, Frequento seus bolg há um tempinho e gosto mto do que escreve. Aliás aquele sua crõnica sobre All star foi para o meu blog e, logicamente dei a dedicatória pra ti.
Quanto a prosa de hoje, a Lúcia me lembrou a música Zaluzejo do Teatro mágico. Destacaria um trecho em especial da música pra vcs "o X pode ter som de Z e o CH pode ter som de X
Acredito que errado é aquele que fala correto e não vive o que diz"
Isso já diz tudo, Que a lúcia de repente é muito mais letrada do que outros letrados, simpesmente por elea vive o que diz. É isso.
Parabéns. Beijo, Camila

Anônimo disse...

Oi Julio.
Também fiquei muito feliz de você ter passado por lá.
Bom, como achei seu blog? Essa pergunta é meio difícil, eu sou uma apreciadora de blogs, amo ler textos alheios. E de um blog vou pulando pra outros. Talvez eu tenha te visto no do Luís Mauro - Alquimia do verbo - não tenho certeza. Ou Da Gaveta, que também visito com freqüência, mas não conheço a dona das ideais, rs
Não havia deixado comentário antes pq não tinha conseguido, tentei várias vezes e dava erro, daí eu me irritava e acabava não deixando, ontem consegui finalmente. E cá estou de novo, rs
Bom, fique à vontade para passar sempre por lá no meu space, vai ser um prazer.
Beijo, Camila

PS: ah, desculpe pelo comentário acima, tem várias coisas erradas, mas eu estava no serviço e o teclado de lá é uma porcaria. =*

Felipe Held disse...

Pô, valeu, Júlio.

Agora que tomei conhecimento, li alguns dos seus posts e achei muito bons também - em especial esse da diarista.

E retribuo as palavras: gostei do seu blog e devo voltar mais vezes.

Abraços!