O sambista e a morena

O sol já irradiava no alto do morro quando o povo começou a sambar. Era sábado, único dia de alegria para aqueles que tinham outros seis de problemas. A morena deixou a casa simples determinada a reencontrar sua paixão, que já estava no meio da roda de batuque. Era quase um ritual, aliás: o grupo subia na laje com os instrumentos e montava o barulho.

E assim era dado o sinal para os espetinhos, a cerveja e a alegria chegarem ao topo do morro carioca. Não tinha que comprar ingresso, eram todos convidados. A única regra era sorrir. "Alvorada lá no morro, que beleza. Ninguém chora, não há tristeza, ninguém sente o dissabor. O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo. E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo".

Antes que a morena pudesse encontrá-lo, ele apareceu. "Ah, corra e olhe o céu; que o sol vai trazer bom dia". E a cena seguiu com um beijo longo entre os dois. O sambista, porém, queria conversar. Pegou-a pela mão, passou pelo isopor recheado, ao lado da churrasqueira de tijolos e chegou a escada, tão pequena que só era permitido mão única. Enquanto um sobe, o outro não desce.

Já no meio da ruela, o sambista tomou a outra mão da morena e a olhou nos olhos. Eram castanhos, reluzentes, cheios de vida. Não é a toa que dizem que os olhos são a janela da alma, afinal ela era assim mesmo. Além de linda e desejada, sabia ser uma boa companheira. Pelo menos naquele último ano em que estiveram juntos. Ele, um pouco impaciente já, decidiu ir logo ao assunto.

- "Porque tudo no mundo acontece. E acontece que eu já não sei mais amar".
- Como assim?

E ele não teve coragem de continuar. Ela, mesmo assustada e abatida, tomou a frente.

- Não gosta mais de mim? Você disse que nunca teve outra...
- "Tive sim, mas comparar com seu amor seria o fim. Por isso, meu amor, vou me calar. Pois não pretendo, amor, te magoar"

A conversa não teve fim. A morena virou as costas e, com as mãos no rosto, subiu o morro sem olhar para trás. O sambista ficou ali, estático, sem saber o que fazer. No fundo, um pouco longe até, só se ouvia um samba vindo do alto do morro, onde todos dançavam despreocupados. "A sorrir, eu pretendo levar a vida; pois chorando eu vi a mocidade perdida".

Por Julio Simões, em 21 de julho de 2007.
Pequena homenagem a um sambista que conheci há pouco tempo. Magro, pequeno e com enormes óculos escuros, canta alegria e tristeza com a mesma maestria.

2 comentários:

Anônimo disse...

Julio, que homenagem bonita!

Que linguagem mais poética esta dos sambistas, não? não é à toa que o Cartola não foi esquecido e hora recebe um documentário, hora uma homenagem...
Um amigo meu me disse certa vez que Cartola se diferenciou dos outros sambistas por conseguir traduzir em seus sambas os sentimentos não só do amor, mas principalmente da separação, com uma simplicidade sensível e muita poesia... justamente o ponto (e a forma) que vc pegou para escrever sobre ele.
Falando sobre simplicidade sensível e muita poesia... gostei de ter encontrado algo nesse sentido também no post sobre a Lúcia. Talvez seja a beleza do olhar antropólogico que me chama atenção... talvez seja a beleza da escrita simples.
Continue assim.
beijo, Josie

obs.:(como se não bastasse escrever tudo isso, ainda tem uma obs) Desnecesário dizer que gostei especialmente da passagem "Não tinha que comprar ingresso, eram todos convidados. A única regra era sorrir."?

Anônimo disse...

Gostei muito dos textos que encontrei aqui, grata surpresa! E obrigado pela indicação ao Hedonismos em seu blogroll :-)